quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Monólogo "do filme" Tempos de paz

Ai de mim! Ai pobre de mim!
Que pergunto a Deus para entender.
Que crime cometi contra Vós?
Pois se nasci, entendo já o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor.
Pois o crime maior do homem é ter nascido!
Para maiores cuidados, só queria saber que crimes cometi contra Vós, além do crime de nascer.
Não nasceram outros também?
Pois se outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei?
Nasce uma ave, e é embelezada por seus ricos enfeites.
Não passa de flor de plumas, ramalhete alado, quando veloz cortando os salões aéreos recusa piedade ao ninho que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto, tenho menos liberdade?
Nasce uma fera, com uma pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas. Logo, atrevida, feroz, a necessidade humana lhe ensina a crueldade!
Monstro de seu labirinto!
E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?
Nasce um peixe, aborto de ovas e lodo, enfeita um barco de escamas sobre as ondas.
Ele gira, gira, por toda a parte, exibindo a imensa liberdade que lhe dá um coração frio!
E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?
Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge de repente, de repente. Entre flores ele se esconde, e como músico celebra a piedade das flores que lhe dão um campo aberto á sua fuga!
E eu, tendo mais vida, tenho menos liberdade?
Assim, assim, chegando a esta paixão um vulcão, qual Etna, quisera arrancar do peito pedaços do coração!
Que lei, justiça ou razão pode recusar aos homens privilégios tão suaves e sensação tão única!
Que Deus deu a um cristão, a um peixe, a uma fera, a uma ave?

(La vida es sueño, ato I, cena I – Pedro Calderón de la Barca – 1600-1681)